Assédio à repórter da TV Brasil em Paris e a mobilização da vulnerabilidade como estratégia coletiva

Fonte: Freepik

Ainda ecoavam as comemorações pelo primeiro ouro brasileiro em Paris, conquistado por Beatriz Souza, mulher negra latinoamericana de origem empobrecida, quando fomos surpreendidas pela notícia do assédio sofrido pela jornalista Verônica Dalcanal, correspondente dos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) nos Jogos Olímpicos. A agressão ocorreu seis anos depois da campanha #DeixaElaTrabalhar, quando um grupo de mais de 50 jornalistas lançou, em 2018, uma ação contra os recorrentes casos de machismo e assédio no universo do jornalismo esportivo.

Conforme noticiado pela própria EBC, enquanto Verônica relatava, ao vivo, o dia dos atletas brasileiros, no sábado, 3 de agosto, três homens se aproximaram e começaram a cantar. Um deles chegou mais perto da repórter e, sem consentimento, beijou o rosto dela. Verônica prontamente repeliu o agressor. Mesmo assim, em seguida, outro dos homens também a beijou e foi igualmente  rechaçado por Verônica. 

Ao vivo, ela disse: “Uma pena que não possamos ter a mesma liberdade para trabalhar que os homens”.

Conheço Verônica há mais de 20 anos: fomos colegas no jornalismo da EBC e também na Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Durante toda a madrugada de sábado para domingo, acompanhei colegas da EBC, da Uerj e muitos desconhecidos se mobilizarem em solidariedade a ela e repudiando a agressão. Também enviei mensagem à Verônica prestando-lhe meu apoio.

No próprio sábado, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, publicou protesto em rede social. “É inaceitável que acreditem ter propriedade sobre nossos corpos e que jornalistas e outras mulheres em espaços de poder passem por situações como essa. Precisamos ser respeitadas em todos os espaços”, disse ela. No mesmo sentido, se manifestaram a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), o presidente da EBC, Jean Lima, e a diretora de Jornalismo da EBC, Cidinha Matos. 

O mesmo ocorreu em relação a entidades que representam nossa categoria trabalhadora, formada majoritariamente por mulheres (58%, conforme o Perfil do Jornalista Brasileiro): no domingo, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), os sindicatos de jornalistas do Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) se solidarizaram com a repórter da TV Brasil.

Dezessete horas depois, a postagem relativa ao fato no perfil da TV Brasil no Instagram já contava com 24 mil curtidas e cerca de mil comentários. 

Não resta dúvida que há aí um importante aprendizado social: já identificamos os assédios e não nos calamos com facilidade diante das agressões. Temos aprendido a “erguer a voz”, que, como poeticamente define a intelectual do feminismo negro bel hooks, é um ato de resistência, de coragem, que desafia políticas de dominação. e, como tal, representa uma ameaça para aqueles que exercem o poder opressivo.

Mesmo assim, essas agressões continuam acontecendo por lá e por aqui. E não apenas no jornalismo esportivo. 

Como nos ensina a historiadora estadunidense Joan Scott, “gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Poder este que reflete desigualdades historicamente produzidas, conforme a pesquisadora do Transverso (PPGJor/UFSC) e jornalista Jessica Gustafson, “por uma cultura que privilegia o masculino em detrimento ao feminino”.

Por um lado, este repugnante episódio – inserido em uma cultura machista de constantes tentativas de dominação dos nossos corpos – nos mostra que ainda há muito o que ser transformado, incluindo as condições de trabalho de jornalistas; por outro, no entanto, evidencia o quanto há gente disposta e lutando para mobilizar a vulnerabilidade em estratégia coletiva, nos termos de Judith Butler. Para a filósofa pós-estuturalista estadunidense, populações marcadas por uma vulnerabilidade e uma precariedade diferencial não estão por esse motivo imobilizadas. Pelo contrário, estamos em nossas casas, nas ruas, nas redações lutando contra as estruturas em prol de uma “vida possível de ser vivida”.

E o Jornalismo, por ser uma instância formadora, que produz e faz circular conhecimento e sentidos, também pode contribuir de forma significativa para fissurar relações de poder, ajudando a ressignificar e a transformar padrões de desigualdade que marcam a cultura e atravessam a produção de notícias. Embora, como nos mostra a professora Marcia Veiga da Silva, o Jornalismo tenha um gênero –  o masculino -, há também iniciativas potentes, dentro e fora da nossa área de atuação, que privilegiam o respeito à diversidade humana. Elas nos mostram que é possível subverter as lógicas convencionais e converter a vulnerabilidade em resistência.

Thais Araujo é Jornalista, mestra e doutoranda em Jornalismo (UFSC), pesquisadora nos grupos Transverso – Jornalismo, Interesse Público e Crítica e DhJor (Jornalismo e Direitos Humanos). Autora do livro “Por exclusão ou tutela: os silenciamentos das pessoas com deficiência no Jornalismo” (em breve pelo Selo Comunicação e Sociedade – PPGCom/UFJF).