
A cobertura jornalística da invasão e do ataque misógino à conta da primeira-dama Janja da Silva na rede social X (antigo twitter), em dezembro de 2023, foi analisada no artigo “Machosfera no Brasil: desafios práticos e éticos na cobertura jornalística da misoginia nas redes sociais”. O estudo, publicado no último dia 20 de junho na modalidade Ahead Of Print pela E-Compós, uma das mais prestigiadas revistas de comunicação do Brasil, é assinado pelas professoras Terezinha Silva (UFSC), Fernanda Nascimento (PUC RS) e Daiane Bertasso (UFSC).
Pesquisadoras do grupo Transverso (PPGJOR UFSC), elas são a equipe brasileira do projeto internacional “La ‘Manosfera’ en las redes sociales: produsage cultural para revertir los estigmas de género y la cultura del odio”, que reúne pesquisadoras(es) da Espanha, Portugal, Estados Unidos e Brasil.
Elas explicam que o estudo publicado pela revista E-Compós teve o objetivo de compreender, a partir da análise do caso do ataque à primeira dama brasileira, em que medida a imprensa contextualiza a violência de gênero na internet, a misoginia e o fenômeno da machosfera – grupos masculinistas com forte atuação digital. Tratou também de discutir as implicações práticas e éticas para uma cobertura jornalística sobre essas formas de violência.
No artigo são analisados 78 relatos jornalísticos publicados por 24 mídias jornalísticas em dezembro de 2023. O artigo aponta que Janja tem sido sistematicamente insultada em comentários nas redes sociais e na deepweb, mas que o caso do ataque hacker se difere dos demais porque o perfil oficial foi invadido, mobilizando autoridades e a imprensa em torno do caso.
As pesquisadoras identificaram que a invasão teve ampla visibilidade na cobertura jornalística. No entanto, apontam que o debate sobre a misoginia, a violência de gênero digital e o fenômeno da machosfera no Brasil não foi aprofundado. Conforme a análise delas, de modo geral, as produções jornalísticas foram repetitivas e restritas à ocorrência e sua investigação. O problema da misoginia e violência digital é mencionado apenas pela própria Janja e aliados do governo Lula.
Elas explicam que estudo aponta a existência de dilemas éticos na cobertura desses casos. Consideram que, a partir de um olhar do interesse público, é necessário expor o grau de violência contido nas mensagens para que a população compreenda a dimensão dos atos. Por outro lado, a exposição na íntegra ou parcial dos xingamentos também pode agir como uma reiteração da violência, associando novamente o nome de Janja aos xingamentos sexistas. Para as pesquisadoras, isso se aplica a outros casos similares, cada vez mais comuns em função da atuação de grupos masculinistas na internet e redes sociais.
De acordo com o artigo, sem problematizar a origem, os objetivos e os impactos desses ataques no cotidiano da atuação das mulheres, é possível considerar que a visibilidade midiática dada às atividades de agressores pode ter um efeito reverso. Ao invés de colaborar para denunciar e combater comportamentos violentos, pode ajudar a celebrar ainda mais o ataque, estimulando-o a ser visto como um ato heróico em comunidades misóginas da machosfera.
Conforme o estudo, a cobertura evidencia a emergência de uma discussão política sobre a necessidade de regulação das plataformas e também da responsabilidade e monetização com as práticas de misoginia. Assim, as pesquisadoras analisam que a produção jornalística perdeu a oportunidade de exercer um papel mais esclarecedor e pedagógico sobre o problema do ódio e da violência de gênero nas plataformas digitais.
Elas também apontam a necessidade de ações para aperfeiçoar práticas jornalísticas, desde a formação profissional até a atualização de códigos de ética. Consideram que essas iniciativas são urgentes para dar melhores respostas aos desafios impostos pelas plataformas digitais e pela proliferação de discursos de ódio e de violência contra mulheres ou outros grupos vulnerabilizados.
Imagem: reprodução do site do projeto Manosfera, Universidade Complutense de Madrid. https://www.ucm.es/manosfera/