A Avenida Hercílio Luz, na região central de Florianópolis (SC), foi tomada por peixes, golfinhos, baleias, sapos e lulas na segunda-feira de carnaval (12/02), durante o cortejo do Bloco Bicharada. O tema deste ano foi dedicado aos seres que vivem em mares, rios e lagos e inspirou as pesquisadoras defiças (termo utilizado na autoidentificação de ativistas com deficiência como um marcador da diferença positivado) Karla Garcia Luiz e Thais Becker a desfilarem, em suas cadeiras de rodas, vestidas de sereias. Como encontraram outra amiga com a mesma fantasia, acabaram formando uma ala do bloco.
“O pessoal do bloco se organizou coletivamente para que ficássemos em um espaço mais acessível, com menos gente. Fizeram um cordão de segurança, nos ofereceram água e cerveja o tempo todo e deu super certo, me senti segura. A ética do cuidado é muito sobre isto: é pressupor a presença e não a ausência [de pessoas com deficiência] e, diante da demanda, todo mundo se corresponsabiliza para garantir o suporte necessário”, afirmou Karla, que é doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A ética do cuidado, mencionada por Karla, é temática central na teoria feminista da deficiência e tem sido estudada em pesquisas de integrantes do grupo Transverso, no que diz respeito à produção jornalística. Ela é fundamental para questionar a universalidade dos ideais de autonomia e independência. Para a filósofa estadunidense Eva Kittay, uma das principais teóricas do assunto, trata-se de uma questão de justiça social ligada à condição humana, não devendo ficar restrita à esfera familiar. Em outras palavras, assim como os seres marinhos, que lotaram o Bicharada este ano, dependem uns dos outros para manter o equilíbrio do ecossistema aquático, as pessoas – com ou sem deficiência – dependem de muitas outras, desde o nascimento até a morte, para as mais diversas experiências.
Ainda para Karla, o carnaval ajuda a visibilizar o direito que todas as pessoas têm de ocupar a rua, definida como “fator de vida das cidades” pelo jornalista e cronista carioca do início do século XX João do Rio. “A gente costuma falar no direito à rua enquanto direito ao trabalho, à escola, ao transporte, mas ele também é direito ao lazer, à experiência cultural. Participar do bloco me fez pensar quando eu estaria usufruindo a rua daquele modo se não fosse pela manifestação popular”, acrescentou ela, que participou pela primeira vez do Bicharada, criado em 2018.
Thais Becker, que é bacharel em Direito e mestranda em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo (USP), ressaltou que a escolha da Avenida Hercílio Luz para o cortejo foi muito acertada, porque garante acessibilidade em todo o percurso. “Isso faz toda a diferença em relação a outros blocos, que acontecem em locais que a gente não consegue passar com cadeira de rodas. E essa reflexão tem muito a ver com o próprio estatuto do bloco, que foi criado para ocupar ruas do Centro como forma de disputar o território para uso da população em geral, transformando o carnaval também em um espaço de ativismo”, disse ela que, este ano, além de desfilar, participou da organização da folia.
De acordo com a socióloga e ilustradora Camila Betoni, uma das organizadoras do bloco, o Bicharada é inclusivo porque é democrático e vice-versa. Para ela, o entendimento político de que são necessários mais espaços públicos vivos na cidade move os esforços para que o bloco, cujo nome faz referência em forma de trocadilho à comunidade LGBTQIAPN+, seja acessível aos diferentes públicos. “Ou seja, menos espaços privatizados e mais democracia e acessibilidade para todo mundo, o que inclui as pessoas com deficiência. Não é um bloco de carnaval que vai fazer isso sozinho, mas a gente se posiciona nesse lado da luta”, destacou.
Camila ressaltou, ainda, que o tema de 2024 lembra outras populações que foram privadas do direito de usufruir um espaço urbano: os arredores do Rio da Bulha, canalizado na primeira metade do século XX, quando teve as margens concretadas para a construção da Avenida Hercílio Luz. Até então, o rio era usado por mulheres que lavavam roupas em suas águas, pescadores, marinheiros, além de contar com fauna aquática.
“Tem uma parte dos Saltimbancos em que o Jumento canta assim: ‘a cidade é uma estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora’. É isso. A cidade está o tempo todo em disputa e a história mostra quem são os devorados e os devoradores. As obras de canalização do Rio da Bulha se alinharam com o higienismo e expulsaram o povo que vivia nas suas margens para longe ou para os morros. A Hercílio Luz é uma cicatriz dessa briga. A especulação imobiliária tem devorado a gente e esse movimento de expulsão continua. Por isso a homenagem foi feita este ano, puxando através da brincadeira de carnaval uma pequena reflexão sobre quem tem direito a circular e viver nesta cidade”, disse.
Para o jornalista e pesquisador de Carnaval Anderson Baltar, os dias de folia representam o grande momento em que o Brasil se olha no espelho e encara seus problemas com leveza e bom humor. “Engana-se quem pensa que carnaval é só festa. É muito mais que isso: a partir do carnaval a gente pode elaborar estratégias para fazer modificações na nossa sociedade. É o grande momento em que a gente pode ocupar a rua e fazer isso da forma mais inclusiva possível”, disse ele, que é doutorando no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFSC.
* Sugestão de leitura:
Para entender mais sobre a ética do cuidado, justiça defiça e outras questões relacionadas à luta por direitos das pessoas com deficiência, sugerimos os artigos A Multiplicidade do Cuidado na Experiência da Deficiência, de Helena Moura Fietza e Anahi Guedes de Mello; Aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência, de Anahí Guedes de Mello, Valéria Aydo e Patrice Schuch; Cuidado na dependência complexa de pessoas com deficiência: uma questão de justiça, de Marivete Gesser, Ilze Zirbel e Karla Garcia Luiz; e Representações sociais das pessoas com deficiência em notícias do portal G1, de Thais Araujo e Terezinha Silva.
Texto: Thais Araujo